domingo, fevereiro 03, 2008

Livro da Vida

Foi como se abrisse o livro da vida, mas numa página anterior à entrada de meu personagem na história, e eu me inserisse no palco de um dos episódios mais bonitos do que viria a ser minha família.

Meu pai e minha mãe, pouco após se casarem e antes de minha "invenção", moraram por cerca de dois anos em Salvador da Bahia, cidade com talvez a mais singular alma brasileira. 1972 e 1973 foram temperados à baiana. Eu viria, já no Rio de Janeiro, em 1976.

Cresci escutando as mais diversas histórias do que era a vida soteropolitana deles: O acarajé na praia já feito de cor para seus paladares pela baiana de plantão no Forte da Barra; os finais de semana de pegar o carro e ir para alguma praia deserta paradisíaca e não encontrar mais ninguém na areia; meu pai e a pimenta preta; os pescadores puxando, ao pôr do sol, a rede do mar ao rítmo de cânticos afros, além de outros. E um personagem coadjuvante chamado Manolo...

Manolo, chileno figuraça e amicíssimo de meus pais, que descia até Rua Barão de Loreto 12 após sua volta de ônibus do trabalho e fazia, religiosamente, sua visitinha a meus pais para uma dose de whisky e um bom papo. Manolo que eu até cheguei a conhecer antes que ele se foi.


Essas e outras histórias foram contadas a mim repetidamente durante a vida e imagino que eu tenha ficado tão impressionado aos 10 quanto aos 31. Sempre foi bom saber o quanto eles tinham sido felizes lá. De alguma forma, me sinto como se todo esse amor que tenho por o que éramos nós três, eu, meu pai e minha mãe, teve sua semente plantada naquele lugar.

E ali estava eu, numa quarta-feira qualquer, em frente ao Edifício Ambassador na Barão de Loreto, olhando para aquele prédio, para aquela calçada, para aquela encosta atrás do prédio, para o hall de entrada de pilotis e longo corredor. Estava ao celular, falando com minha mãe em Pensacola, Florida, e começamos a lembrar, exatamente como antes, as histórias de lá. Não demorou muito, a garganta fechou e os olhos embaçaram. Desliguei o celular e não resisti. Enfiei o rosto no ombro de minha namorada e chorei a saudade de meu pai.

Interessante... Não chorei só de saudade de meu pai ou da ausência de minha mãe. Tinha mais coisa no meio, a começar pela simples realização do sonho de conhecer a rua deles em Salvador. E tinha até uma certa inveja, sabia? É claro que injustificada, mas ainda assim uma parte mais egoista de mim queria ter participado deste capítulo junto com eles. E o exato oposto, de saber que eles puderam se curtir, sozinhos, um ao outro, naquele cenário e naquela época - ali não era meu lugar nem meu tempo.

Escrevo isso agora e me dou conta de uma coisa que certamente já sabia mas que ficou realmente evidente na Bahia:

A vida que eu conheço não se trata somente de tudo que se passou após meu nascimento. Ela foi sendo moldada, planejada, sonhada, projetada e desejada desde muito antes, ativamente e passivamente, sempre sofrendo as influências de tudo e todos ao seu redor. Essa longa e bela metamorfose adquiriu forma naquela quarta-feira.

Que alegria, a minha... Eu tenho um pouquinho da Salvador de meus pais dentro de mim.