terça-feira, agosto 25, 2009

Gabi

Sentirei falta daquele sorriso. Não era um sorriso qualquer. Era um sorriso verdadeiro e contagiante, desafiador e confortante ao mesmo tempo, persistente e doce dentro de uma amargura que jamais transpareceu, apesar de sua sabida existência. Foi um dos sorrisos mais belos que já vi e pertenceu a uma das pessoas mais extraordinárias que cruzaram meu caminho.

Gabriella, minha prima de terceiro grau, teve, ontem, seu merecido descanso, aos 32 anos de idade. O câncer que a envenenava venceu após uma genuína maratona de batalhas travadas ao longo da vida.

Ainda bebê, Gabi perdeu seu olho direito para a doença, substituído por uma prótese de vidro. Passado o susto e superada a desgraça, parecia que os danos se limitariam a isso, e por quase vinte e cinco anos, assim se manteve. Gabi teve a infância e a adolescência que a maioria de nós teve – feliz, completa. Mas isto era a proverbial calmaria antes da tempestade.

Acho que ninguém imaginava o calvário que viria. A partir de seus vinte e cinco anos, o câncer iniciou um verdadeiro assalto ao seu corpo. A primeira investida da doença (ou segunda, se considerado o olho na infância) foi na musculatura da coxa. Câncer extirpado, quimioterapia, fisioterapia. Sorriso. Em seguida, o pulmão. Câncer extirpado, corpo retalhado, quimioterapia, fisioterapia. Sorriso. Depois, o mediastino. Este não pôde ser extirpado, mas seguiu a mesma rotina de sofrimento já descrita. Sorriso. Foram sete anos lutando, sofrendo, sendo submetida a uma enormidade de intervenções, cirurgias e tratamentos. Fosse eu, certamente não teria agüentado. Mas, tratando-se do espírito iluminado e luminoso que era a Gabi, havia nela uma força incomum e uma calma que, para nós que assistíamos de camarote, chegava a ser desconcertante.

Há pouco mais de uma semana, eu estive na casa da Gabi para vê-la. Não a via há uns seis meses antes disso e, ao entrar em seu quarto e dar de cara com ela na cama, imagino que minha expressão delatou meu susto. O câncer e os conseqüentes tratamentos, ambos cruéis, tinham deixado marcas. Ela estava muito magra e abatida, tinha a voz um pouco mais baixa e dificultada pelo desconforto no peito, mas incrivelmente, permanecia em sua impávida serenidade. Via-se a tristeza em seus olhos, é claro, por estar enfrentando pela enésima vez tamanho desafio e sofrimento, mas aquele sorriso, como de praxe, transbordava.

Em certo momento, cheguei a brincar com ela. Mandei que tirasse aquele sorriso da cara, dizendo que não era justo ou normal que, diante daquilo tudo, diante dos rostos piedosos e consternados que ela encontrava, ela ainda o mantivesse. Obviamente, minha intenção era o exato oposto: mostrá-la o quanto a admirava por sua tenacidade, por sua graça perante tamanha desgraça, por sua força e fé, por sua capacidade de superar, diariamente, este estorvo. Era também minha maneira de agradecê-la por tudo isso. Afinal, ela, sozinha, colocava o resto em perspectiva para mim e para todos que a conheciam. Por tudo isso, eu a chamava de minha "fortaleza".

Emendei dizendo a ela que jamais se desfizesse dele, pois era sua marca registrada e era, acima de tudo, nossa viga mestra.

Conversamos bastante, discutimos nossos respectivos futuros (Gabriella era formada em desenho industrial e era simplesmente brilhante em sua profissão), fizemos planos de reunir os primos assim que ela estivesse melhor. Logo, resolvi me retirar para deixá-la descansar. Dei-lhe um beijo no rosto e me despedi, parando por um momento para apreciar aquele belo e radiante sorriso.

Foi a última vez que o vi.

Hoje, aquele sorriso tem outros donos. Não mais pertence àquele corpo que tanto fez para extinguí-lo. Pertence a outra dimensão, mais pura e digna dele. E pertence, em memória, a mim e a todos que o conheceram.




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Gabi,

Foi um dos grandes privilégios de minha vida poder tê-la como prima e, principalmente, como fonte de inspiração. Obrigado por me mostrar a dimensão do espírito humano e por colocar a vida, com todas suas alegrias e tristezas, em perspectiva. Você foi, é, e será sempre nossa luz.

Um beijo do primo, com toda a admiração, toda a gratidão, e todo o carinho do mundo.

Um comentário:

Daniela disse...

Lindo demais. Me emocionei ao ler.
Só discordo de você com relação ao corpo. Na minha opinião, ele lutou pela vida, o tempo todo. E também cumpriu sua missão.
BD