sexta-feira, outubro 21, 2005

Mordendo a Língua

Insistência triste esta nossa, sempre enrolando a língua mais do que o necessário, sempre lançando mão de uma bela e valiosa herança Lusitana para desovar, em terras tupiniquins, idéias e nomes in english. Aparentemente, não basta a poluição auricular diária, a teimosia em abrir a boca para massacrar nossa própria língua portuguesa (pra mim fazer, que eu seje, de menor, e similares). Eis que fomos também infectados por um vírus gutural, um mal social, econômico, cultural e aparentemente hereditário que nos engana em achar que devemos trocar nosso sonoro português pelo inglês, porque "assim fica mais bonito".
Pois, pedindo permissão para apossar-me das palavras de um ícone da música brasileira, dou-lhes minha humilde resposta:


E do amor gritou-se o escândalo
Do medo criou-se o trágico
No rosto pintou-se o pálido
E não rolou uma lágrima
Nem uma lástima
Pra socorrer

E na gente deu o hábito
De caminhar pelas trevas
De murmurar entre as pregas
De tirar leite das pedras
De ver o tempo correr

Mas, sob o sono dos séculos
Amanheceu o espetáculo
Como uma chuva de pétalas
Como se o céu vendo as penas
Morresse de pena
E chovesse o perdão

E a prudência dos sábios
Nem ousou conter nos lábios
O sorriso e a paixão

Pois transbordando de flores
A calma dos lagos zangou-se
A rosa dos ventos danou-se
O leito dos rios fartou-se
E inundou de água doce
a amargura do mar

Numa enchente amazônica
Numa explosão atlântica
E a multidão vendo em pânico
E a multidão vendo atônita
Ainda que tarde
O seu despertar

Chico Buarque, 1969


Alguma dúvida sobre a capacidade de nossa língua mãe em nos enfeitiçar? Algum indício de que uma ou outra palavra em inglês serviria de adorno na obra de arte que é esta letra de música? Certamente nosso exuberante idioma dá conta do recado...

Mas sim, terei que fazer justiça aos cento e setenta e nove milhôes, novecentos e noventa e nove mil, novecentos e noventa e nove brasileiros deste planeta:
Só há um Chico.

Mesmo assim, repito que nos falta, acima de tudo, o interesse em desbravar a rica imensidão do nosso idioma. Falta-nos a gana em saber expressar em nossa própria língua aquilo que queremos comunicar ao mundo. E falta, finalmente, o amor-próprio e o patriotismo do cidadão brasileiro para fazê-lo com gosto.

Já me disseram pessoalmente, nas vezes em que estive no exterior, que falamos o idioma mais bonito da Terra e que, dentre as variações do português, o brasileiro é o mais belo. Gostaria eu que nós brasileiros fizéssemos jus a esta fama.

E aqui estamos, dia após dia, mordendo a língua.

2 comentários:

Renata Rollin disse...

Muito bem Flipper! Inaugurou o português em sua página brilhantemente e não só pela escolha do tema...

Michael disse...

Great post, although I don't understand a single word.